RESUMO: O conflito gera uma ruptura no tecido social e atinge, além das partes envolvidas diretamente, todo o círculo social que as circunda. Contudo, para a relação processual penal, apenas existe o acusado e o Estado, representando a sociedade. A vítima, também protagonista do conflito, é afastada, nas ações penais públicas. Nesse contexto, utilizando-se de críticas feitas pelo movimento abolicionista penal e da vitimologia, especificamente quanto à ausência de protagonismo da vítima, de reconhecimento da culpa pelo agressor, bem como de reparação do dano sofrido, tem-se aplicação, ainda que complementar, da Justiça Restaurativa (JR). A presente pesquisa visa analisar como a Justiça Restaurativa pode contribuir para o gerenciamento dos conflitos domésticos. Buscou-se entender como as necessidades da vítima podem ser compreendidas e atendidas pelos órgãos de proteção e como a responsabilização do agressor pode ir além do encarceramento, tornando-se um ato de reparação. Foi utilizado o método indutivo, através de uma abordagem qualitativa, de natureza aplicada, com objetivo exploratório, descritivo e explicativo, utilizando-se como procedimento a pesquisa bibliográfica e documental. Nessa seara, vislumbra-se a possibilidade da JR servir como um instrumento reparador, mormente ao se levar em consideração a raiz do conflito. Deveras, as práticas restaurativas permitem que as partes dialoguem, através da mediação de um facilitador, o qual zelará para que agressor e vítima possam estar no mesmo nível de autonomia. As necessidades são expostas, bem como as motivações do crime. Empós, é buscada uma solução que atenda à vítima.
PALAVRAS-CHAVE: Justiça Restaurativa; violência doméstica e de gênero; gestão de conflitos; reparação.
ABSTRACT:
The conflict generates a rupture in the social construction. In addition to the parties directly involved, it reaches the entire social circle that surrounds them. However, for the criminal procedural law, there is only the defendant and the State, representing society. The victim, also the protagonist of the conflict, is removed from public criminal lawsuit. In this context, having recourse to criticisms made by the penal abolitionist and victimology movements, specifically regarding the lack of protagonism of the victim, of acknowledgment of guilt by the aggressor, as well as of repairing the damage suffered, there is the application, although complementary, of Restorative Justice (RJ). The present research aims to analyze how Restorative Justice can contribute to the management of domestic conflicts. It sought to understand how the victim’s needs can be understood and attend by the protection organs and how the aggressor’s responsability can go beyond incarceration, becoming an act of repair. Through a qualitative approach, the inductive method was used of an applied kind, with an exploratory, descriptive and explanatory objective, using bibliographic and documentary research as a procedure. Therefore, it realized to the possibility of RJ serving as a reparative instrument, especially when considering the source of the conflict. Indeed, restorative practices allow the parties to dialogue, through the mediation of a facilitator, who will ensure that the aggressor and victim can be on the same level of autonomy. The needs are exposed, as well as the motivations for the crime. Then, it sought to a solution that attends the victim.
KEYWORDS: Restorative Justice; Domestic and gender violence; Management of conflict; Repair.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O Brasil é um dos países com a maior população carcerária do mundo. Também é o país que detém os maiores índices de criminalidade. O mero estudo desses dados demonstra que o sistema penal pátrio não tem mostrado a eficiência esperada. Apenas processar e prender não enseja a queda da violência. Há vários fatores que devem ser levados em consideração no momento de criação e aplicação das leis penais: fatores sociais como a desigualdade social, questões de gênero, questões econômicas, falta de estrutura dos órgãos de investigação, ausência de planejamento dos órgãos de segurança pública, dentre outros.
Com efeito, o conflito é um fator social que deve ser abordado em suas diversas nuances. O conflito gera uma ruptura no tecido social, razão pela qual não atinge apenas as partes envolvidas diretamente, mas também todo aquele círculo social que as circunda. Contudo, para a relação processual penal, apenas existe o acusado e o Estado, representando a sociedade. A vítima, também protagonista do conflito, é afastada, nas ações penais públicas. Apenas nas ações penais privadas, ou públicas condicionadas à representação, sua vontade é levada em consideração.
Nesse contexto, utilizando-se de críticas feitas pelo movimento abolicionista penal e da vitimologia, especificamente quanto à ausência de protagonismo da vítima, de reconhecimento da culpa pelo agressor, bem como de reparação do dano sofrido, tem-se aplicação, ainda que complementar, da Justiça Restaurativa (JR).
Para a Justiça Restaurativa, o crime leva ao rompimento do tecido social, pois sua dimensão perpassa a seara pública, e atinge, também, a esfera privada, tendo em vista os conflitos interpessoais. Logo, uma relação processual dual (Estado-agressor) não consegue atingir a dimensão global do conflito e, por conseguinte, não o resolve.
Essa dificuldade é bem observada nos conflitos domésticos, nos quais o conflito é retirado das partes e levado ao crivo de um terceiro: o Estado-juiz, sob a justificativa, válida, de que não pode ser limitado ao âmbito doméstico, haja vista a vulnerabilidade de uma das partes, qual seja, a mulher.
Contudo, em que pese a necessidade de intervenção estatal nos conflitos domésticos, a fim de restabelecer a igualdade entre as partes, o que se observa no cotidiano é que existem diversas realidades não acolhidas pelo Poder Público, que as trata de maneira igual, aprofundando, assim, o conflito, sem observar suas raízes. Com efeito, a vítima, principal protagonista do conflito não tem suas necessidades conhecidas e atendidas, o que pode levar, na maioria das vezes ao reinício do ciclo de violência.
A presente pesquisa visa analisar como a Justiça Restaurativa pode contribuir para o gerenciamento dos conflitos domésticos. Também se buscará entender como as necessidades da vítima podem ser compreendidas e atendidas pelos órgãos de proteção e como a responsabilização do agressor pode ir além do encarceramento, tornando-se um ato de reparação.
Foi utilizado o método indutivo, através de uma abordagem qualitativa, de natureza aplicada, com objetivo exploratório, descritivo e explicativo, utilizando-se como procedimento a pesquisa bibliográfica e documental.
O desenvolvimento da pesquisa consistirá em duas seções. A primeira referente aos principais aspectos da Justiça Restaurativa, principalmente as espécies de práticas restaurativas. A segunda acerca dos conflitos domésticos, suas peculiaridades e a aplicabilidade da Justiça Restaurativa, seus benefícios e desafios.
Decerto que a busca pela real e efetiva proteção à mulher perpassa a seara judicial e requer um olhar mais amplo, já que “a particularidade é a riqueza da diversidade” (ZEHR, 2015, p. 52). O respeito à individualidade e ao valor de cada ser humano é o pilar de qualquer sociedade democrática. Novas formas democráticas de participação comunitária tornam o direito legítimo, já que os destinatários das normas são também seus próprios autores.
2 DESENVOLVIMENTO
A busca pela efetividade da Justiça perpassa uma visão formal e limitada do processo penal. Com efeito, para que se possa obter um resultado satisfatório para as partes, principalmente para a vítima, é necessário se entender as origens do problema que resultou no crime e pensar em uma solução para além da punição. Nesse contexto, vê-se que a Justiça Restaurativa pode se tornar uma alternativa ao sistema judiciário tradicional, principalmente naqueles casos em que há conflitos familiares, os quais, independente de punição do agressor, as relações comumente se perpetuam, seja em razão dos laços familiares, do poder familiar sobre os filhos, dos sentimentos.
2.1 Justiça Restaurativa: um novo olhar sobre os conflitos
Não há um consenso de como a Justiça Restaurativa surgiu: alguns autores fazem referências às práticas consuetudinárias dos povos indígenas dos Estados Unidos e Canadá, mais precisamente a Tribo Maori, que realizavam “círculos de diálogo”, com o objetivo de dirimir conflitos da comunidade. Outros, mencionam que a primeira experiência contemporânea de práticas restaurativas, tal como alternativa ao sistema punitivista, ocorreu em 1974, na cidade de Kitchener, província de Ontário, Canadá.
O caso envolvia dois jovens acusados de vandalismo contra vinte e duas propriedades. Através de um encontro entre os jovens e as vítimas, foi possível estabelecer um diálogo, no qual foram expostas as necessidades dos ofendidos, o reconhecimento da culpa pelos ofensores, e realizado um acordo de reparação. O caso deu surgimento ao Programa de Reconciliação Vítima-Ofensor, no Canadá.
A prática restaurativa foi inicialmente difundida em outros países, como Inglaterra, Áustria, Finlândia e Noruega. Na década de 90 foi realizada, na Itália, conferência internacional da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), tendo por objetivo analisar a aplicação da Justiça Restaurativa em diversos países (além daqueles acima mencionados, tem-se a Bélgica, França, Alemanha, Grécia, Itália, Holanda, Escócia e Turquia).
Também na década de 90, a América Latina passou a aplicar, ainda que timidamente, práticas restaurativas, em alguns países, como exemplo Argentina, Chile, Guatemala, Nicarágua, Uruguai, Peru, Colômbia e Brasil. Em 2006, a Organização das Nações Unidas (ONU) publicou o Manual de Programas de Justiça Restaurativa, que tem como objeto:
[…] apoiar os países na implementação do Estado de Direito e no desenvolvimento da reforma da justiça criminal. Pode ser usado em uma variedade de contextos, inclusive como parte da assistência técnica do UNODC e projetos de capacitação. Apresenta ao leitor os programas e processos de justiça restaurativa. Um Manual complementar de Princípios Básicos e Práticas Promissoras sobre Alternativas à Prisão também está disponível no UNODC (ONU, 2006, on-line).
No Brasil, as práticas restaurativas se iniciaram no ano de 1998, em escolas públicas, através do Projeto Jundiaí: viver e crescer em segurança, com a finalidade de prevenir conflitos, reparar danos e reconstruir relações. Outras práticas semelhantes se seguiram, especialmente na área juvenil, como alternativa ao sistema tradicional, ou em paralelo a esse.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), através da Resolução nº 225 de 31 de maio de 2016, dispôs sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário, que tem por objetivo a consolidação da identidade e da qualidade da Justiça Restaurativa definidas na normativa, a fim de que não seja desvirtuada ou banalizada.
Ainda segundo o CNJ, compreende-se a Justiça Restaurativa como instrumento de transformação social, para além de uma metodologia de resolução de conflitos, que atua tanto voltada ao conflito como de forma a conectar as pessoas à rede de relações que garantem o bem-estar social.
A Justiça Restaurativa tem como premissas: o rearranjo da noção de crime, passando a não ser considerado como uma violação contra o Estado ou uma transgressão a norma jurídica; o foco voltado para a solução do conflito através do diálogo entre os sujeitos envolvidos; a infração se torna uma ação resultante de um contexto complexo; a construção a partir das expectativas das vítimas; o tensionamento das teorias justificativas da pena; o descolamento do núcleo identitário punitivo do sistema de justiça.
Os principais objetivos das práticas restaurativas são: oportunizar o encontro das partes, reparar o dano e transformar as relações e os sujeitos, gerindo da melhor forma consensual o conflito. São valores norteadores da Justiça Restaurativa a não dominação, o empoderamento, o respeito aos limites legais, a escuta respeitosa, a igualdade entre as partes, e o respeito aos direitos humanos. São pressupostos para a aplicação das práticas restaurativas: imparcialidade do facilitador, a confidencialidade do que foi discutido, a voluntariedade das partes, a razoabilidade e a proporcionalidade. A Justiça Restaurativa pode ser aplicada para prevenir violências, estabelecer valores e cuidados mútuos; tratar conflitos, promover a responsabilização e construir a cultura de paz, através do respeito, diálogo, cuidado e acolhida.
Especificamente, quanto às práticas restaurativas, existem a mediação vítima-ofensor, os círculos familiares e os círculos de construção de paz. Em todos esses procedimentos a figura do facilitador é de grande relevância. É através do facilitador que as partes passam a se comunicar, com respeito, através de uma comunicação não violenta.
Antes de adentrar nas espécies de práticas restaurativas, cabe destacar a importância de um dos pilares da Justiça Restaurativa: a comunicação não violenta, idealizada por Marshall B. Rosenberg, que, segundo o qual, consiste na habilidade de linguagem e de comunicação para desenvolvimento da capacidade de continuar humanos mesmo em condições adversas.
Com efeito, mesmo que não entendamos que nossas palavras sejam violentas, as vezes elas ferem, magoam as outras pessoas. Por tanto, a comunicação não violenta é uma reformulação da maneira como nos expressamos, a fim de que seja afastado o autoritarismo e seja gerada consciência, com honestidade e clareza. O respeito e a empatia são fundamentais para que as necessidades próprias e alheias sejam compreendidas, e assim o conflito dirimido.
São componentes da comunicação não violenta: a observação sem julgamento ou avaliação; o sentimento; as necessidades e o pedido. Essas ferramentas são de suma importância para as práticas restaurativas. É necessário expressar os quatro componentes, assim como percebê-los.
É nesse contexto que se faz imprescindível o papel do facilitador, o qual deve ser imparcial, equidistante das partes, mas sensível aos seus sentimentos e necessidades.
Os encontros são precedidos de momentos reservados das partes com os facilitadores, a fim de que esses últimos possam avaliar qual prática restaurativa se adéqua mais ao conflito, bem como se é possível realizá-las, uma vez demonstradas a voluntariedade e abertura dos possíveis participantes. Esses encontros são conhecidos como pré-círculos.
Após, a depender da situação, é possível que seja realizada a mediação apenas entre as partes envolvidas. Nesse caso, caberá ao mediador estimular as partes a expressarem o seu ponto de vista, e seus sentimentos. A vítima descreve suas experiências com o conflito, o impacto que sofreu e, o ofensor, por sua vez, explica as razões que o levaram a praticar tal ato. A vítima poderá realizar perguntas ao ofensor. Após essa etapa inicial, a vítima e o ofensor são levados a pensar em uma solução, um acordo adequado ao caso concreto. É importante salientar que, para que haja o encontro é necessário que não haja desigualdade entre as partes. Se uma delas apresentar vulnerabilidade e impossibilidade de expressar livremente seus sentimentos e necessidades, e de decidir, não poderá ser realizada a prática restaurativa.
Por sua vez, os círculos familiares são realizados com a participação da vítima e ofensor, além das vítimas secundárias, assim como pessoas que sejam importantes paras as partes principais. São exemplos: familiares, amigos, professores e profissionais da rede de apoio. No círculo, o facilitador funciona como um guardião da palavra: permite que cada participante tenha a sua vez de se expressar, com respeito, e possa ser ouvido pelos demais. A solução para o conflito é construída no círculo. Assim como a execução do acordo é acompanhada por aqueles que dele participaram.
Por último, nos círculos de construção de paz, a participação da comunidade é marcante. Consoante Neemias Moretti Prudente (2013, p. 74):
Os círculos são usados para alcançar um consenso sobre a melhor maneira de resolver o conflito e dispor do caso, abordando os problemas subjacentes (do indivíduo e da comunidade) associados ao conflito, levando em conta a necessidade de proteger a comunidade, atender as necessidades das vítimas e a reabilitação e responsabilização do ofensor.
A ritualística é semelhante aos círculos familiares. As partes se sentam em círculos. Há a peça de centro e o objeto de fala. A peça de centro representa algo que faça parte da cultura da comunidade, algo significante para as partes ali presentes. Já o objeto de fala, organiza o discurso dos participantes. Somente aquele que o detém está com a palavra. Após, passa-o para a pessoa ao lado, e assim sucessivamente. Todos têm a vez de se expressar, calmamente, sem interrupções. O círculo se inicia com as perguntas geradoras, pertinentes com o conflito e com as partes, formuladas pelos facilitadores. Essas têm o condão de fazer com que as partes, ao contarem histórias de suas vidas, possam se interligar, e identificar elementos em comum. Após, adentra-se no conflito em si e busca-se uma solução, em consenso. A principal característica dos círculos de paz é o fluxo de comunicação através das trocas de experiências.
Ainda que as práticas restaurativas não sejam muito aplicadas no cotidiano jurídico, ou mesmo social, percebe-se que nos últimos anos tem se criado e fortalecido um movimento para que elas venham ser mais difundidas. Essa tem sido a intenção dos órgãos de controle, como CNJ e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Como bem salientado no início desse arrazoado, é necessário que se busque alternativas ao sistema penal ora falido, e a Justiça Restaurativa pode ser uma dessas saídas, já que trata do conflito desde a sua gênese até sua dissipação.
2.2 Gestão de conflitos domésticos através da Justiça Restaurativa
Inicialmente, é importante a compreensão da influência das desigualdades socioeconômicas, do passado escravagista e do patriarcado na sociedade brasileira, a fim de que se possa traçar o perfil da vítima de violência doméstica e compreender suas reais necessidades – que não são idênticas para todas as mulheres. Assim como se mostra necessário entender o perfil do agressor e perquirir quais fatores contribuem para esse tipo de violência. Por trás de cada conflito há uma realidade única, ainda que resultado de agressões variadas de origem em comum.
Partindo-se do conceito de interseccionalidade (CRENSHAW, 2002), segundo o qual existem diferentes eixos de subordinação que se interrelacionam, e geram opressões múltiplas, é possível uma melhor compreensão da realidade vivenciada pela mulher no Brasil.
Com efeito, ao se analisar dados estatísticos, compreende-se que a violência atinge mais determinados grupos, em detrimento de outros. Por exemplo, as mulheres negras, com baixa instrução e de menor poder aquisitivo aparecem como o grupo mais suscetível a sofrer atos de violência doméstica (ZART; SCORTEGAGNA, 2015). Nesse sentido, pode-se citar conclusão inserta no Atlas da Violência (2020), consoante o qual houve um aumento expressivo ao longo dos anos de feminicídios cometidos contra mulheres negras, ao passo que houve uma diminuição de crimes dessa espécie contra mulheres não negras. Importante essa constatação, a fim de que o poder público possa conhecer o público-alvo dentro do sistema de proteção.
Outro fator a ser considerado, na gestão de conflitos domésticos é como se dá a dinâmica da agressão. O círculo de violência, objeto de estudos, embora não seja idêntico em todos os casos, pode apresentar um padrão típico, segundo WALKER (2016 apud KIST, 2019), e três seriam as fases, em períodos não necessariamente iguais, ou com níveis de violência iguais: inicia-se com a construção e acumulação de tensão, depois se passa à descarga da tensão sobre a mulher e, por fim, há a chamada fase da “lua-de-mel”, na qual o agressor se reconcilia com a vítima, prometendo-lhe mudança de comportamento. A vítima, por motivos psicológicos e sociais, mantém o relacionamento. Entretanto, o círculo se reinicia e se perpetua.
Quando a mulher decide quebrar esse círculo, e aciona o Poder Judiciário, existem fatores externos que não são levados em consideração no processo penal, como o afeto, os filhos, a dependência financeira. Com efeito, o crime de violência doméstica não é igual aos outros crimes. Existem relações anteriores e conflitos subjacentes.
Infelizmente a lei continua sendo aplicada de maneira cega, e na verdade não se importa se o círculo foi quebrado ou não. O objetivo maior é punir o agressor, sob a argumentação de que haverá proteção à vítima. Em casos de reconciliação do casal, pode surgir uma visão preconceituosa, de que a mulher “gosta” da violência (NOVAIS,2020), quando na verdade uma série de fatores pode influenciar na decisão da vítima – fatores esses negligenciados pelo Estado e pela sociedade.
O empoderamento da vítima necessita advir da intervenção multiagencial, e não pela mera intervenção do processo penal. Respostas simples não resolverão problemas complexos. Dentro desse contexto, entende-se que a Justiça Restaurativa pode surgir como uma alternativa.
Deveras, a autonomia da vítima necessita ser levada em consideração. Como bem pontua Gisele Cittadino (2020), a autonomia privada, associada à autodeterminação moral, e autonomia pública, vinculada à autorrealização ética, pressupõem-se mutuamente. Trata-se de um debate público que estabelecerá as normas, cujos destinatários serão seus próprios autores. A solução proposta pela JR, através dos círculos de paz, ou das conferências vítima-ofensor, perpassa esse debate, ao permitir o diálogo e a culminância em uma saída construída pelas partes.
Mais do que isso, como o pluralismo significa diversidade de identidades sociais, não se pode esperar que o Estado trate igualmente cidadãos que possuem distintos valores sociais e culturais. Por seu turno, Habermans pretende demonstrar que há uma relação de co-originalidade entre os direitos fundamentais e a soberania popular, vez de que, mas sociedades pós-convencionais, os indivíduos são, ao mesmo tempo, autores e destinatários do seu próprio direito (CITTADINO, 2020, p. 23).
O direito construído, a partir das práticas restaurativas, torna-se, portanto, legítimo, ao garantir as liberdades subjetivas que asseguram a autonomia privada, bem como a participação dos cidadãos através de sua autonomia pública.
Acerca da participação ativa das partes na condução da gestão do conflito, importa ilustrar que o Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (FONAVID, 2018), em seu enunciado 23, dispôs: “ENUNCIADO 23: A mediação pode funcionar como instrumento de gestão de conflitos familiares subjacentes aos procedimentos e processos que envolvam violência doméstica”. Em que pese o entendimento formulado mencionar a mediação, é possível concluir que métodos extrajudiciais podem contribuir para a gestão dos conflitos domésticos, a exemplo da JR, observando-se alguns critérios.
Com efeito, preliminarmente, um dos principais cuidados ao se utilizar as práticas restaurativas é o equilíbrio de poder entre agressor e vítima, isso porque a mulher pode se encontrar em determinado grau de vulnerabilidade que pode implicar na ausência ou diminuição do poder de tomada de decisões.
A prática restaurativa deve ser aquela mais adequada ao conflito. Há que se ter um apurado grau de sensibilidade por parte do gestor do programa e dos facilitadores nessa escolha. Também deve-se evitar revimitimização da mulher. O objetivo maior da prática restaurativa é facilitar a comunicação entre as partes, a fim de que o agressor tenha consciência das necessidades da vítima e, assim, possa proceder à reparação. Quando o diálogo não é possível, ou quando a prática restaurativa se mostre mais danosa do que o próprio crime, não será possível o uso da JR. Por isso entende-se que a JR deva ser usada de maneira subsidiária ou complementar à Justiça Criminal.
São muitos os desafios ainda a serem enfrentados, já que a JR ainda é pouco difundida e vários críticos são contrários a sua utilização no âmbito da violência doméstica. Contudo, não se pode exclui-la de pronto, pois, como mencionado anteriormente, os conflitos domésticos necessitam de um olhar plural, que transcenda o mero processo penal.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em que pese a Lei Maria da Penha haver sido um marco na proteção do direito das mulheres, ainda há muito o que se construir. Isso porque o sistema de proteção, por vezes, encontra-se fragmentado e impossibilita que a vítima possa ser dignamente ouvida e suas necessidades atendidas.
Com efeito, o sistema judicial penal é focado na relação Estado e acusado; a vítima apenas aparece como testemunha. Através da junção de ideias do movimento abolicionista e da vitimologia, a Justiça Restaurativa surge como uma alternativa a essa relação bilateral, incluindo a vítima como sujeita de direitos.
Nessa seara, vislumbra-se a possibilidade da JR servir como um instrumento reparador, mormente ao se levar em consideração a raiz do conflito. Deveras, as práticas restaurativas permitem que as partes dialoguem, através da mediação de um facilitador, o qual zelará para que agressor e vítima possam estar no mesmo nível de autonomia. As necessidades são expostas, bem como as motivações do crime. Empós, é buscada uma solução que atenda à vítima. Prestigia-se assim formas democráticas de participação comunitária.
Importante salientar que os crimes de violência doméstica acontecem entre partes que já se conhecem e mantiveram ou mantém um relacionamento, ao contrário da maioria dos outros delitos, em que vítima e acusado têm contato apenas no momento dos fatos. Trata-se de uma relação complexa, que envolve sentimentos, e, na maioria das vezes, o compartilhamento de cuidados com os filhos, motivo pelo qual requer um olhar mais apurado por parte dos órgãos de proteção.
O objetivo maior da JR, na gestão do conflito doméstico, é, portanto, cessar o ciclo de violência, dando autonomia à vítima, para que essa, dentro da relação decida qual a melhor reparação. Não se está aqui a dizer que haverá a supressão dos mecanismos de proteção e repressão. previstos em lei (como as medidas protetivas ou a prisão). Mas é possível compreender que a JR pode atuar de maneira complementar, visando a reparação da lesão, conforme a vivência da vítima.
Como pontos positivos da JR na gestão de conflitos domésticos, tem-se o empoderamento da vítima, que terá o poder de fala, e poderá administrar o conflito, anteriormente gerenciado exclusivamente pelo Estado. A autonomia, por conseguinte, é vista como a capacidade de dar a si mesmo o seu próprio direito.
Outrossim, o diálogo e a informalidade permitem a maior participação das partes na descoberta da origem dos problemas subjacentes que deram origem ao conflito. Importante ressaltar que há vítimas que não focam na punição do agressor, mas tão somente na interrupção do círculo de violência.
Contudo, há que se ressaltar que são necessários filtros de segurança à aplicação da JR nos conflitos domésticos: é necessário que haja a voluntariedade das partes, a presença de um mediador treinado e experiente, a participação das partes em pré-círculos e o reconhecimento, ainda que parcial, de culpa pelo agressor.
A presente pesquisa ainda poderá ser aprofundada quanto às experiências já existentes no Brasil e no mundo, mormente no que diz respeito à subsidiariedade e/ou complementariedade da JR ao sistema penal tradicional.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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